No século IV a.C., em data imprecisa, surgiu em Atenas a primeira concepção de
sociedade perfeita que se conhece. Tratou-se do diálogo A República
(Politéia), escrito por Platão, o mais brilhante e conhecido discípulo de
Sócrates. As idéias expostas por ele - o sonho de uma vida harmônica, fraterna,
que dominasse para sempre o caos da realidade - servirão, ao longo dos tempos,
como a matriz inspiradora de todas utopias aparecidas e da maioria dos
movimentos de reforma social que desde então a humanidade conheceu.
Essa é a obra mais importante de Platão. Nela ele expõe suas principais
idéias. Ali está descrito o Mito da Caverna, o que é um filósofo e como é
uma sociedade justa entre outras idéias.
Em A República, Platão
idealiza uma cidade, na qual dirigentes e guardiães representam a encarnação da
pura racionalidade. Neles encontra discípulos dóceis, capazes de compreender
todas as renúncias que a razão lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo está
superado e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casam com os da
totalidade social, e o príncipe filósofo é a tipificação perfeita do demiurgo
terreno. Apesar de tudo isso e desse ideal de Bem comum, Platão parece
reconhecer o caráter utópico desse projeto político, no final do livro IX de
A República.
Tendo em vista esse ideal, o trabalho manual
continuava não valorizado no âmbito da cidade-estado. A classe dos
trabalhadores não era classe cidadã, pois não lhes sobrava tempo para a
contemplação teórica da verdade e para a práxis política. Para Platão, o ideal
humano se realizava na figura do cidadão filósofo, livre das incumbências da
sobrevivência, constituindo um ideal altamente elitista.
Para além de
todas as utopias da sua república ideal, da figura dos reis filósofos, devemos
apreciar o ideal ético de Estado e o esforço de Platão para desvendar os
vínculos que ligam os destinos das pessoas ao destino da cidade.
A
República começa com um sofista, Trasímaco, declarando que a força é um
direito, e que a justiça é o interesse do mais forte. As formas de governo fazem
leis visando seus interesses, e determinam assim o que é justo, punindo como
injusto aquele que transgredir suas regras. Para responder a pergunta "Como
seria uma cidade justa?" , Sócrates começa a dialogar, principalmente com
Gláucon e Adimanto. Platão salienta que a justiça é uma relação entre
indivíduos, e depende da organização social. Mais tarde fala que justiça é fazer
aquilo que nos compete, de acordo com a nossa função. A justiça seria simples se
os homens fossem simples. Os homens viveriam produzindo de acordo com as suas
necessidades, trabalhando muito e sendo vegetarianos, tudo sem luxo. Para
implantar seu sistema de governo, Platão imagina que deve-se começar da estaca
zero. O primeiro passo seria tirar os filhos das suas mães. Platão repudiava o
modo de vida com a promiscuidade social, ganância, a mente que a riqueza, o luxo
e os excessos moldam, típicos dos homens ricos de Atenas. Nunca se contentavam
com o que tinham, e desejavam as coisas dos terceiros. Assim resultava a invasão
de um grupo para o outro e vinha a guerra.
Platão achava um absurdo que
homens com mais votos pudessem assumir cargos da mais alta importância, pois nem
sempre o mais votado é o melhor preparado. Era preciso criar um método para
impedir que a corrupção e a incompetência tomassem conta do poder público, Mas
atrás desses problemas estava a psyche humana, como havia identificado
Sócrates, Para Platão o conhecimento humano vêm de três fontes principais: o
desejo, a emoção, e o conhecimento, que fluem do baixo ventre, coração e cabeça,
respectivamente. Essas fontes seriam forças presentes em diferentes graus de
distribuição nos indivíduos. Elas se dosariam umas às outras, e num homem apto a
governar, estariam em equilíbrio, com a cabeça liderando continuamente. Para
isso, é preciso uma longa preparação e muita sabedoria. O mais indicado, para
Platão, é o filósofo: "enquanto os filósofos deste mundo não tiverem o espírito
e o poder da filosofia, a sabedoria e a liderança não se encontrarão no mesmo
homem, e as cidades sofrerão os males".
Para começar essa sociedade
ideal, como dissemos, deve-se tirar os filhos dos pais, para protegê-los dos
maus hábitos. Nos primeiros dez anos, a educação será predominantemente física.
A medicina serve só para os doentes sedentários das cidades. Não se deve viver
para a doença. Para contrabalançar com as atividades físicas, a música. A música
aperfeiçoa o espírito, cria um requinte de sentimento e molda o caráter, também
restaura a saúde.
Para Platão, a inspiração e a intuição verdadeira não
se conseguem quando se está consciente, com a razão. O poder do intelecto está
reprimido no sono ou na atenção que aflora com a doença. Ele então critica o
controle da lei e da razão à certos instintos que ele chama de ilegais.
Depois dos dezesseis anos, e de misturar a música para lições musicais
com a música pura, essas práticas são abandonadas. Assim os membros dessa
comunidade teriam uma base psicológica e fisiológica. A base moral será dada
pela crença em Deus. O que torna a nação forte seria Ele, pois ele pode dar
conforto aos corações aflitos, coragem às almas e incitar e obrigar. Platão
admite que a crença em Deus não pode ser demonstrada, nem sua existência, mas
fala que ela não faz mal, só bem.
Aos vinte anos, chegará a hora da
Grande Eliminação, um teste prático e teórico, Começa a divisão por classes da
República. Os que não passarem serão designados para o trabalho econômico.
Depois de mais dez anos de educação e treinamento, outro teste. Os que passarem
aprenderão o deleite da filosofia. Assim se dedicarão ao estudo da doutrina e do
mundo das Idéias.
O mundo das Idéias seria um mundo transcendente, de
existência autônoma, que está por trás do mundo sensível. As Idéias são formas
puras, modelos perfeitos eternos e imutáveis, paradigmas. O que pertence ao
mundo dos sentidos se corrói e se desintegra com a ação do tempo. Mas tudo o que
percebemos, todos os itens são formados a partir das Idéias, constituindo cópias
imperfeitas desses modelos espirituais. Só podemos atingir a realidade das
Idéias, na medida em que pelo processo dialético, nossa mente se afasta do mundo
concreto, atravessando com a alma sucessivos graus de abstração, usando
sistematicamente o discurso para se chegar à essência do mundo. A dialética é um
instrumento de busca da verdade.
Platão acreditava numa alma imortal,
que já existia no mundo das Idéias antes de habitar nosso corpo. Assim que passa
a habitá-lo esquece das Idéias perfeitas. Então o mundo se apresenta a partir de
uma vaga lembrança. A alma quer voltar para o mundo das Idéias. Um dos primeiros
críticos de toda essa teoria de Platão foi um de seus alunos da Academia,
Aristóteles.
Igualmente conhecida na República é a alegoria da caverna,
que ilustra como percebemos apenas parte do mundo, reduzindo-o.
Um grupo
de pessoas vive acorrentada numa caverna desde que nasceu, de costas para a
entrada. Elas vêem refletida na parede da caverna as sombras do mundo real, pois
há uma fogueira queimando além de um muro, depois da entrada. Elas acham que as
sombras são tudo o que existe. Um dos habitantes se livra das amarras. Fora da
caverna, primeiro ele se acostuma com a luz, depois vê a beleza e a vastidão do
mundo, com suas cores e contornos. Ao voltar para a caverna para libertar seus
companheiros, acaba sendo assassinado, pois não acreditam nele.
Depois
de estudar a filosofia, aqueles que forem considerados aptos irão testar seus
conhecimentos no mundo real, onde experimentarão os dissabores da vida, ganhando
comida conforma o trabalho, experimentando a crua realidade. Aos cinqüenta anos,
os que sobreviveram tornarão-se os governantes do Estado.
Todos terão
oportunidades iguais, mas na eliminação serão designados para classes
diferentes. Os filósofos-reis não terão nenhum privilégio, tendo só os bens
necessários, serão vegetarianos e dormirão no mesmo lugar. A procriação será
para fins eugênicos, o sexo não será apenas por prazer. Haverá defensores contra
inimigos externos, os guardiões, homens fortes, dedicados à comunidade. Não
haverá diferença de oportunidade entre o sexo, sendo cada um designado a fazer
uma tarefa de acordo com a sua capacidade.
Platão fala da renuncia do
individuo em prol da comunidade, impondo inúmeras condições para a vida. Ele
atenta para um problema muito preocupante em nossos dias: a superpopulação. Os
homens só poderiam se reproduzir entre os trinta e quarenta e cinco anos, e as
mulheres entre os vinte e quarenta anos. Também a legislação de Esparta, que
muito inspirou Platão, e a proposta de Aristóteles na Política levam em conta
este aspecto. Assim, resumidamente seria o Estado ideal, justo. O próprio Platão
fala de dificuldade em se fazem um empreendimento dessa natureza. Um rei
ofereceu à ele terras para fazer sua República, ele aceitou, mas o rei ficou
sabendo que quem iria governar eram os filósofos e mudou de idéia.
Apesar do título, A República (em grego: Politéia), Platão nesta
obra não tem como ponto principal a reflexão sobre teoria política. Nesta obra,
o filósofo lida sobretudo com as questões em torno da paidéia, a formação grega,
na tentativa de impor uma orientação filosófica de educação em oposição à
paidéia poética então vigente. Outro alvo que tem em vista é a carreira que os
sofistas vinham desenvolvendo como educadores que, com sua retórica, preparavam
os cidadãos a saberem argumentar nos embates democráticos da ágora. Não tinham,
portanto, um compromisso com a verdade - seus argumentos giravam em torno das
percepções, opiniões e crenças - a doxa. A república ideal seria mais um
resultado da paidéia filosófica que Platão tenta fundamentar e propor com seus
argumentos nesta obra do que o tema central da argumentação em si. Apenas um
terço dos dez livros de A República, aproximadamente, tratam da
organização e fundamentação filosófica da pólis especificamente. O tratamento
dado às questões por Platão acaba por se tornar sistematizado por aqueles que
adotam sua teoria, a partir do quê o pensamento no ocidente se torna uma
sucessão de sistemas teóricos. Isso nos leva a considerá-lo o "pai" da
filosofia, ao menos da filosofia enquanto pensamento sistematizado.
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